terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Entrevista sobre a Batalha do Jenipapo



 1- Porque quadrinhos sobre a Batalha do Jenipapo, como surgiu a ideia?

Eu já pensava no assunto enquanto fazia o curso de história na UESPI, lendo textos como o do Monsenhor Chaves em minha graduação. Sempre achei o texto do Monsenhor bem didádito e visual. Isso me estimulava a querer desenhar algo, ainda mais porque eu já tinha a percepção de que seria algo que poderia se transformar em um épico, em uma grande história.

Quando concluí os estudos, comecei a trabalhar na FUNDAC e, lá, na adaptação da peça de teatro que o Estado sempre fez, escrita por Aci Campelo. Enquanto trabalhava lá, também vi o Governo dar mais importância à Batalha, vi o "13 de Março de 1823" ser colocado na bandeira do Piauí. Desse ponto, até fazer um projeto e apresentar para o governo do Estado foi pouco tempo. O projeto foi aprovado e partimos para a produção do quadrinho.


2- Quanto tempo levou a sua confecção?

1 ano. 4 meses para o roteiro, 6 meses desenhando e 2 meses editando.


3- Esse trabalho foi levado para as escolas?

Não! Esse é minha grande tristeza e decepção, tanto com o Governo quanto com escolas privadas. O quadrinho foi lançado em 2009. Já são quase 13 anos. Tenho certeza que muitos professores, diretores, pedagogos (o que seja) sabem da existência desse livro, não dá pra alegar ignorância, mas ele nunca foi utilizado com um paradidático por escola nenhuma. Nem mesmo quando o Estado tinha quase 2mil exemplares guardados em seus estoque. 

Falta uma política para isso. Recentemente, enviei um exemplar para um edital do Governo para seleção de paradidáticos. Espero que com os 200 anos da Independência e os 200 anos da Batalha ano que vem, a gente possa ter maior visibilidade.


4 - Você acredita que, nesse caso, os quadrinhos despertam bem mais interesse do aluno no assunto, do que em livro didático?

Gostaria de dizer que sim. Mas estamos vivendo num contexto de tik tok, onde tudo é tão rápido e em movimento, que qualquer leitura que alunos possam vir a fazer deve ser estimulada. Quadrinho não é melhor ou pior que qualquer outro tipo de leitura que um aluno possa vir a fazer. O importante é que tenhamos bons professores, que selecionem um bom material de suporte para o ensino e meu quadrinho pode servir muito bem a esse propósito.


5- Vocês pensam em relançamento da edição?

Eu fiz uma nova edição em 2018 e ainda tenho algumas poucas centenas de exemplares aqui, que supre meus clientes aqui na livraria Quinta Capa. Mas eu penso em novas edições. Se uma escola grande decide adotar o livro em algumas séries e se eu precisar de 500 unidades, eu precisaria reimprimir o livro. E se o Estado resolvesse adotar e colocar 1 livro na mão de cada aluno na rede pública? Seria algo muito grande. 

Mas eu penso em fazer também uma edição especial de 200 anos da Batalha do Jenipapo, em formato grande, capa dura. Edição especial de colecionador. Estou trabalhando para isso.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

História e arte: a batalha do jenipapo adaptada para quadrinhos


Por Bernardo Aurélio de Andrade Oliveira[1]

Resumo: Este trabalho aborda como o desenvolvimento da história cultural e o ressurgimento da importância das narrativas influenciam a produção do texto histórico e de que forma a linguagem científica se relaciona com o texto artístico. Partindo deste princípio, foi possível analisar a construção do discurso e as escolhas do autor ao narrar um fato histórico a partir da construção de uma história em quadrinhos (Foices & Facões: A Batalha do jenipapo), apontando em que medida e de quais formas um historiador se permite dialogar com a arte.
Palavras-chave: história cultural, arte, literatura, ficção histórica, história em quadrinhos.


“A história é um romance real”
Paul Veyne

1. A história cultural e a subjetividade do narrador

Para iniciar essa discussão em torno das relações que existem entre a história e a arte, que será exemplificada aqui através da adaptação de um fato histórico para história em quadrinhos na obra Foices & Facões: A Batalha do Jenipapo[2], é preciso uma breve introdução historiográfica. Espero não me estender além da conta sobre esses pontos, mas não poderíamos tatear no escuro, isso por entendermos que é necessária uma explanação sobre o que é a história cultural antes de dialogarmos com o que seria uma ficção histórica e arte.
A história cultural de hoje é fruto de uma construção, inicialmente, mais voltada para o campo econômico e social, que ganhou força e popularidade depois da crise de 1929 devido à publicação da revista Annales d´histoire économique et sociali, lançada por Lucien Febrev e March Bloch, considerados representantes da primeira geração da École des Annales.
O princípio desse movimento era se opor à história meramente política e factual dos pensadores marxistas e positivistas. Os outros historiadores que se uniram aos editores dessa revista passaram a se aproximar cada vez mais de um movimento interdisciplinar, buscando parcerias entre história e outras áreas do conhecimento.

A nova história é a história escrita como uma reação deliberada contra o “paradigma” tradicional (...). Será conveniente descrever este paradigma tradicional como “história rankeana” (...) Poderíamos também chamar este paradigma de a visão do senso comum da história, ao invés de ser percebido como uma dentre várias abordagens possíveis do passado (BURKE, 1992, p. 10).

Ao longo das gerações seguintes às de Febvre e Bloch, o campo histórico foi se abrangendo e os objetos históricos sendo reconfigurados. A ideia de uma história total (não no sentido de uma história que conta tudo plenamente, mas que se interessa por todo o produto da atividade humana) foi consolidando a percepção de que tudo possui uma história que pode ser escrita, um passado que pode ser vasculhado, inclusive no campo imaterial, como as próprias “ideias”, surgindo então a possibilidade de uma história das mentalidades. Nesse ponto, o cruzamento da história com a antropologia foi fundamental. O estudo antropológico do comportamento humano e sua concepção do que é a cultura permitiu ao historiador observar um campo de objetos de estudos praticamente sem fim.
A história cultural passa a buscar outras fontes e não apenas os documentos que expressam pontos de vista oficiais. A nova história preocupa-se com uma variedade de evidências das mais diversas, como tradições imateriais e a própria oralidade. Tudo isso colocou em xeque a cientificidade da evidência e do ofício histórico em comparação aos métodos dos profissionais rankeanos que buscavam a objetividade. De acordo com Georges Duby “a ideia de verdade em história modificou-se porque o objeto da história se deslocou, porque a história passou a se interessar menos pelos fatos que pelas relações” (1993, p. 59). A história cultural considera as diversas possibilidades de interpretação e de percepção da História, numa busca muito maior pela verossimilhança do que pela verdade dos fatos, portanto, ela afasta-se do ideal científico de apresentar ao leitor o que “realmente aconteceu”, como pretendiam os positivistas e marxistas, entretanto:

(...) não podemos evitar os preconceitos associados a cor, credo, classe ou sexo, não podemos evitar olhar o passado de um ponto de vista particular. O relativismo cultural obviamente se aplica, tanto à própria escrita da história, quanto a seus chamados objetos. Nossas mentes não refletem diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra. (BURKE, 1992, p. 15).

Então, a objetividade histórica passou a ser questionada devido a essa nova interpretação do campo e dos objetos históricos. Os historiadores começaram a criticar nos textos de seus próprios colegas essas “convenções” de que nos fala Peter Burke, esses pontos de vista particulares. Assim, parte do ofício do historiador acaba se tornando subjetivo, na contramão do que prega os princípios da cientificidade do século XIX. Ou seja, a história:

(...) afastou-se dos ideais de ciência dura e reorientou-se para veio tão aberto que se permitiu denominações sugestivas como História do Cotidiano, História das Mentalidades, História das Sensibilidades, ficando em segundo plano as tradicionais história política, econômica e demográfica. Firmou-se a expressão “crítica cultural” para definir a atividade do estudioso que busca seu instrumental em campo amplo e variado, superando o enrijecimento de conceitos, de formas e de manifestações que caracterizou os estudos humanísticos de meados do século XX (WEINHARDT. 2002. pg. 109).

Michel de Certeau observa que essa tentativa de reconstrução da verdade objetiva no discurso histórico através de uma prática, teoricamente, funcional e exata, tornou-se ultrapassada e obsoleta justamente porque a subjetividade na construção do discurso organiza a realidade quase que à sua revelia:

Há quarenta anos, uma primeira crítica do “cientificismo” desvendou na história “objetiva” a sua relação com um lugar, o do sujeito. Analisando uma dissolução do objeto (R. Aron), tirou da história o privilégio do qual se vangloriava, quando pretendia reconstruir a “verdade” daquilo que havia acontecido. A história “objetiva”, aliás, perpetuava com essa ideia de uma “verdade” um modelo tirado da filosofia de ontem ou da teologia de anteontem; contentava-se com traduzi-la em termos de “fatos” históricos... Os bons tempos desse positivismo estão definitivamente acabados. Desde então veio o tempo da desconfiança. Mostrou-se que toda interpretação histórica depende de um sistema de referência; que este sistema permanece “filosofia” implícita particular; que infiltrando-se no trabalho de análise, organizando-o à sua revelia, remete à “subjetividade” do autor (CERTEAU, 2006, p.67).

Essa subjetividade ainda causa desconforto entre historiadores que buscam exatidão científica e isenção ideológica em seu ofício. Para reforçar essas ideias, Michel de Certeau, em A Escrita da História, debruça-se sobre três variáveis que influenciam diretamente esse fazer histórico: 1) o lugar social; 2) a prática do historiador que artificializa a natureza e 3) a escrita: “a operação que faz passar da prática investigadora à escrita (...) pois a fundação de um espaço textual provoca uma série de distorções com relação aos procedimentos de análise” (2006, p. 94) no ofício de fabricação de um conhecimento histórico. Esses três tópicos, que são também condições inerentes ao fazer histórico, estão intrinsecamente ligados: “de fato, a escrita histórica permanece controlada pelas práticas das quais resulta; bem mais do que isto, ela própria é uma prática social que confere ao seu leitor um lugar bem determinado” (CERTEAU, 2006, p.95).
Mais adiante, vamos entender de que forma a plasticidade da escrita influencia na elaboração do conteúdo histórico, principalmente quando estamos considerando uma linguagem artística como meio de comunicar essa informação. Trocando em miúdos, vamos entender como a linguagem das histórias em quadrinhos pode favorecer o conteúdo histórico e vice-versa.

2. O retorno da narratividade para a história.

A partir da segunda metade do século XX, historiadores procuraram se tornar melhores narradores e isso só aconteceria se se afastassem do modelo rankeano, como diz Luiz Costa Lima, concluindo que o surgimento das teses narrativistas é uma reação negativa ao cientificamente saturado ambiente acadêmico norte-americano:

(...) em um ambiente acadêmico saturado de modelos de cientificidade, como era o dos departamentos norte-americanos de ciências sociais, nas décadas de 60 e 70, o desafio lançado aos pensadores da história era o da adequação de sua disciplina à exigência científica. (...) a tematização contemporânea da narratividade, em vez de representar um revival, é uma resposta negativa, muitas vezes embaraçada, à demanda de uma história de fato científica. (LIMA apud WEINHARDT. 2002. pg.112).

No início de minha experiência acadêmica, presenciei debate acalorado de professor reiterando a cientificidade da prática histórica diante de um discurso cada vez mais presente da subjetividade na prática historiográfica. “Vocês estão numa universidade. Vocês fazem ciência!”, disse, certa vez, aquele professor. É inegável que existe um modo de fazer, um método científico de coletar dados e averiguar informações: a prática, enumerada por Certeau como um dos elementos fundamentais na construção histórica. Acontece que, ao longo do século XX, com a proximidade da antropologia, com a afeição pelo estudo das mentalidades, com a história lançando-se ao infinito mundo das possibilidades temáticas culturais e com todas as inovações advindas a partir do processo de virada linguística, onde “em certo sentido toda pessoa está limitada pela linguagem[3]”, tornou-se cada vez mais difícil, para o historiador, apresentar-se como uma figura isenta de um pesquisador científico.
Diante de todas essas inovações e novas percepções, aceitar a condição de que historiadores são também ficcionistas tornou-se um novo paradigma que precisava ser aceito a partir da definição das fronteiras entre o que é arte e o que é história. E é exatamente no metiê dessas duas áreas do conhecimento que se configuram as diferenças: existem métodos para a história e para a literatura e, eventualmente, esses modos de fazer podem e devem dialogar entre si.
É importante lembrar, entretanto, que qualquer texto historiográfico é um tipo de literatura, mesmo aqueles mais sisudos e, evidentemente, existe público para eles textos. Certa vez, em sala de aula, um colega falou que sentia muito mais prazer lendo um texto objetivo, direto e claro, provindo de uma escola marxista tradicional, do que qualquer texto mais rebuscado, ou estiloso, fruto de influencias da escola dos Annales. Existem, evidentemente, preferências linguísticas.
Entretanto, quando aponto uma proximidade maior entre história e literatura, falo da necessidade da construção da narrativa histórica a partir de recursos advindos da arte, da poética, como os antigos faziam na Grécia, e não apenas a partir da simples constatação de que história é também linguagem. Quer dizer, qualquer texto de linguagem marxista é também literatura, mas a perspectiva artística na elaboração do texto histórico que defendo é um pouco diferente. Vamos tomar como exemplo uma obra fundante da historiografia brasileira que é Capítulos da História Colonial (1907), de Capistrano de Abreu.
Capistrano de Abreu preocupou-se em compreender o Brasil a partir da construção dos sertões de dentro e fez um livro pequeno e enxuto:

Não é um livro que se compara; é um livro que se distingue na historiografia brasileira, escrito numa linguagem simples, branda, enxuta, onde havia doutrina que persuadia, compreensão que se fazia perceber e novidade apertada, colhida na vastidão sem fim de suas pesquisas. Não acumulava fatos, mas com sua intuição compreendia os homens e suas atividades, tornando vivo o recontamento.
A história não é só fato: é também a emoção, o sentimento e o pensamento dos que viveram (...) Os sentimentos, as especulações, os pensamentos do povo, suas aspirações são uma coisa que nunca se repetirá, que viveu e que interessa ao historiador tanto quanto aos fatos materiais (RODRIGUES. 1969, p. 29).
           
            Então, o método aplicado por Capistrano antecipou em muitas décadas aquilo que só começaria a si consolidar a partir década de 1960 através da Escola dos Annales. De acordo com José Honório Rodrigues, Capistrano já não valorizava tanto o paradigma cientifico da história factual e seriada das escolas tradicionais materialistas, procurava libertar-se das datas, nomes e cronologia que sufocavam mais que informavam nesses estudos de grossos e vários volumes, como os de Adolfo Varnhagen (1969, p. 30). Para ele, valia mais a capacidade da síntese, preocupado em entender um tempo longo, de proporções psicológicas que revelasse e permitisse compreender internamente o sentimento do povo. Era fundamental para Capistrano de Abreu considerar a longa passagem dos tempos (assim mesmo, no plural: "tempos") e “pela primeira vez apresentava-se uma concepção psicológica do suceder histórico e se revivia a vida da alma popular” (1969, p. 33).
            Seria errado dizer que Capistrano era um subjetivista que não se preocupava com os fatos como realmente aconteceram por se dedicar mais à compreensão do tempo de longa duração e psicológico, ou por “colocar-se em simpática comunhão com o espírito dos atores e autores do drama, reconstruir o processo do pensamento, penetrar as conclusões e motivos que ditaram a ação e fizeram acontecer o acontecimento” (RODRIGUES, 1969, p. 35).
Esse preocupar-se com a síntese das ideias, com as mentalidades e com a longa duração dos processos históricos é uma forma de fugir da literatura histórica rankeana e de aproximar-se, de fato, de uma literatura histórica mais literária, artística. Essa capacidade de abstrair o sentimento e o espírito do tempo de uma maneira mais atraente que a contumaz concatenação de documentos, dados, datas e nomes é o princípio básico que permite ao historiador dialogar com uma linguagem mais artística. É preciso que o historiador que quer descobrir ou praticar uma narrativa mais passional encontre essa capacidade de síntese psicológica dos atores do processo histórico. É preciso entender as personagens e descrever bem seus dramas e cenários.

3. A construção da ficção histórica em Foices & Facões - A Batalha do Jenipapo

Qualquer dicionário irá lhe informar que ficção é uma elaboração, uma criação imaginária, é fruto de um ato criativo. A princípio, pode parecer estranho a afirmação de que toda história é uma ficção, entretanto, é a mais pura verdade. Os objetos ou documentos não falam por si, não interagem ou dialogam, eles necessitam de ser elaborados, só assim a história é modelada, ficcionada. Nesta perspectiva, a história é tecida por um autor, é fruto de uma imaginação capaz de ligar os fatos e elaborar um longo texto dedutivo que frui das informações adquiridas na realidade.
A grande questão que diferencia a ficção histórica da ficção artística ou literária é a tênue e longa fronteira entre o que é real e o que é fantasia, que são as matérias primas dessas duas construções narrativas.

Hayden White, um dos nomes mais citados quando se comenta o papel do historiador e do ficcionista, figurando entre os principais desencadeadores desse debate, posiciona-se radicalmente, restringindo as diferenças ao conteúdo e anulando a distinção formal ente a narrativa histórica e a ficcional. Ensina que a primeira se constrói sobre fatos reais, a segunda sobre fatos imaginários, mas as duas são construções verbais. (WEINHARDT. 2002. pg. 106).


Portanto, o historiador é também um construtor verbal e todo “construto verbal é reconhecido como simulacro que não se confunde com o fato” (WEINHARDT. 2002. pg. 107). Isso significa que a produção historiográfica não é o fato, é uma representação, assim como a ficção literária. Northrop Frye publicou um ensaio, no início da década de 60, “em que define o escritor de criação como meta-historiador, cujo trabalho é dedutivo, impondo uma forma a seu objeto, em função da qual o escolhe, enquanto o método do historiador é indutivo, a forma sucedendo a pesquisa” (WEINHARDT. 2002. pg. 107).
Ora, é justamente o processo indutivo, que se constrói através dos indícios que são coletados durante a pesquisa, que permite a elaboração de um texto histórico. Em minha pesquisa sobre a batalha do Jenipapo, e nas oportunidades quando pude falar sobre isso, chamei esses elementos que definem a forma do texto após a pesquisa, que variam desde indícios, vestígios, evidências, documentos ou fatos, de “espinha dorsal da narrativa”.
Não se trata de dedução intuitiva todos os arranjos no quadrinho Foices & Facões que levaram o major Fidié a encontrar a resistência organizada no dia 13 de março de 1823. Esses “arranjos” na verdade são os fatos históricos que pontuam na narrativa literária tal qual vértebras sustentam um corpo humano, e esta narrativa é friccionada e ficcionada e a partir de uma linguagem literária rica dos mais variados recursos estéticos.
            O que importa aqui é entender como esses recursos estéticos contribuem para a construção histórica, pois “não se trata de propor a ficção como sucedâneo ou como concorrente da história, mas sim de observar de que forma e em que medida a convergência dos estudos históricos e literários pode contribuir para revelar e desvelar mecanismos da criação artística” (WEINHARDT. 2002. pg. 110). Em meu quadrinho sobre a batalha do Jenipapo, criei personagens para poder melhor abordar questionamentos populares que poderiam ocupar a mente dos homens “comuns”[4] que participaram da luta armada. Quem eram esses anônimos? O que pensavam? Porque decidiram participar da batalha? Não existem muitos indícios sobre isso porque os registros que há são os relatos oficiais da província e das figuras tratadas como baluartes do movimento e, por isso, Foices & Facões aparece como uma leitura que “nos faz questionar como outros sujeitos vivenciaram o chamado para a guerra” (ARAÚJO. In AURÉLIO. 2018, p.13). A criação artística me permitiu sintetizar algo que existe para além desses documentos oficiais:

Talvez enquanto os outros busquem construções epistemológicas, nós nos empenhemos em descobrir um fugidio passado que nos explique e justifique. Na busca da impossível descoberta, do resgate interdito, o passado é moldado, ainda que também, e sempre, provisoriamente. Tzvetan Todorov diz que o europeu encontrou o eu na descoberta e no reconhecimento do outro, ou seja, do habitante da América. O nosso outro talvez seja o antepassado. É preciso encontrá-lo, ainda que ficcionalmente (WEINHARDT. 2002, p. 110).


Deveria ser inevitável, para qualquer narrador de uma ficção histórica, essa busca pelos indivíduos, pelas mentalidades e pela vivência, por isso, é tão importante para nós, narradores, essa virada que a história cultural proporcionou (ou sofreu) ao longo do século XX. As ficções históricas buscam, por uma questão de princípio, compreender os protagonistas de suas narrativas. E é nesse sentido de “compreensão” que existe uma busca de reconhecimento identitário, uma procura do nosso “outro” no passado que construímos.
Johny Santana Araújo disse que Foices & Facões “ajuda-nos a compreender a construção de símbolos e mitos para a manutenção da moral dos combatentes e dos cidadãos; a conformação de identidades nacionais e regionais; entre outras tantas questões desenvolvidas” (ARAÚJO. In AURÉLIO. 2018, p.13). No meu quadrinho, pude buscar o eu a partir do nosso outro, entender nosso antepassado piauiense e reconhecer certa construção mitológica que existe acerca de um sertanejo aguerrido, e, para isso, precisei criar Teobaldo: um vaqueiro que se encontra diante do impasse entre permanecer na sua vida bucólica da fazenda ou participar da luta armada, relato este que não existe na historiografia piauiense deste momento histórico, apenas na ficção artística.

Lawrence Stone, em texto datado de 1979, rastreia os momentos e movimentos dos estudos históricos, destacando as diferentes metodologias da abordagem científica e centrando atenção nas causas do ressurgimento da narrativa na prática do historiador. Identifica o auxílio da antropologia e situa a Mentalité entre os estudos históricos, entendendo esse movimento como uma busca do indivíduo. Observa que um “número cada vez maior de 'novos historiadores' tentava então descobrir o que se passava na cabeça das pessoas do passado, e como era viver naqueles tempos, questões estas que reconduzem inevitavelmente aos usos da narrativa” (WEINHARDT. 2002. pg. 110 - 111).
               
Nesta busca pelo que se passa na cabeça das pessoas do passado é que o narrador procura justificar sua ficção histórica. No caso de Foices & Facões, o que mais me inquietava era compreender como se desenhou na mente daquelas pessoas os fatos que levaram à batalha, como eles interpretaram o que viam, como se angustiaram, já que não deixaram registros que chegassem até nós explicando o que sentiram. Era preciso interpretar essas pessoas, na perspectiva do termo alemão zeitgeist, que significa compreender o espírito do tempo para imaginar como aquele momento interferia no cotidiano daquelas pessoas.
A narrativa ficcional me permitiu elaborar um drama crível de um núcleo familiar que vivia em uma fazenda e que assistiu, da varanda de sua casa, o desenrolar dos fatos e a marcha de quase 2 mil soldados que saíram de Oeiras em direção à Parnaíba.
Este núcleo é formado por um vaqueiro, Teobaldo, sua irmã e sobrinhos. Há também um fazendeiro português, Januário, sua esposa e filhos, bem como sua escrava. À medida que os fatos são apresentados no quadrinho, os personagens reagiam a eles e essa reação é claramente inventada, ficcionada, nem por isso mentirosa. A cerca desse ponto, Johny Santana Araújo, disse:

A proposta de Bernardo Aurélio tem sido inovadora, levando-se em consideração que se trata de desnovelar uma história que insistentemente tem se tentado manter no limbo, esquecida no munturo da história oitocentista do Brasil. Os autores, através de seus desenhos, tentam dar vez àqueles que tiveram sua voz emudecida pelo tempo ou pela operação historiográfica a que estiveram sujeitos ao longo dos anos (ARAÚJO. In AURÉLIO. 2018, p.11).

A voz de Teobaldo e dos demais personagens do quadrinho encontra eco na historiografia, mesmo que seja uma voz emudecida pela operação historiográfica, portanto, apesar de ser obra de ficção, o sentimento que ronda os personagens é histórico, isso porque “hoje podemos, através da ciência da História, perscrutar os espaços esquecidos, uma história vista de baixo, e observar os ditos e não ditos e com o inovador trabalho em Foices & Facões, pode se contemplar, visualmente, um caminho dessa história tão multifacetada” (ARAÚJO. In AURÉLIO. 2018, p.11). Entretanto, a prática da ficção histórica, por vezes, é mais que esquadrinhar espaços esquecidos, pode ser entendida como o preenchimento de espaços vazios:

Eis uma teoria sobre a qual, há algumas décadas, apressadamente poder-se-ia pensar que se digitou historiador por escritor de ficção. Paul Veyne percebe o parentesco, tanto que afirma ser a crítica literária o termo de comparação para a teoria da história. Por mais que se disponha de documentação, explica Veyne, o trabalho do historiador está sujeito à causalidade e à retrodição. Este último termo, emprestado da teoria das probabilidades, designa uma operação de preenchimento, que se realiza por hipóteses (WEINHARDT. 2002. pg. 113).

Quando o autor consegue jogar luz sobre espaços esquecidos e, no caso de Foices & Facões, esse espaço é entender o sentimento dos homens comuns que viviam aquele tumultuado momento de levantes independentes, ele está contribuindo para o discurso científico, histórico. Acontece que quando fazemos isso com arte, nós contribuímos, sobremaneira, para um processo de elaboração de identidade, pois construímos o nosso eu a partir do nosso outro, o antepassado, mesmo que ficcionalmente.
E nesse processo de construção do antepassado e de consequente reconhecimento entre leitor e obra, que uma ficção histórica proporciona, é que está a riqueza que uma história, autodeclarada, isenta e sem paixões, dificilmente ofereceria. É, justamente, na natureza dessa identificação com os personagens, da junção entre operação de uma prática científica e arte (elaborada com declarada subjetividade, que não deveria mais assustar nenhum historiador), que reside o fausto da ficção histórica, isso porque o processo de escrita histórica influenciada pela plasticidade artístico-literária pode facilitar um entrosamento entre leitor e obra simplesmente porque o ser humano, de maneira geral, gosta de consumir e de se envolver com arte.
Johny Santana Araújo disse que Foices & Facões:

(...) propõe um passeio surpreendente e diferente, nos levando a uma viagem fantástica aos rincões do interior do Norte do Piauí de 1823 e permiti-nos sentir o calor e as emoções vividas pelo povo do Piauí tal como a proposta de Jules Michelet que nos convidou viver a história da França e da sua Revolução de 1789 e se transportar para dentro dela” (ARAÚJO. In AURÉLIO. 2018, p.14).

            Foices & Facões, assim como outras obras de ficção histórica, nos convida a experienciar sentimentos antigos, a reviver a vida da alma popular semelhante à forma que Jules Michelet ou Capistrano de Abreu se permitiram investigar o espírito do tempo.
Existe, então, o historiador que sabe utilizar de uma linguagem envolvente que aprendeu com recursos estilísticos literários e existem artistas que se utilizam de técnicas historiográficas para produzir uma obra. Não é raro, entretanto, existirem autores como eu, que trabalho com arte e tenho formação como historiador, o que me permite dialogar sem grandes problemas entre essas duas matrizes e produzir uma obra artística com o devido cuidado que o discurso histórico necessita.

4. Por que fazer ficção histórica?

Arte consegue envolver o espectador de uma forma que, normalmente, a linguagem científica não é bem-sucedida. É muito comum que programas educativos utilizem de recursos artísticos ou específicos da comunicação para atrair o grande público[5].
Uma das explicações que justificam o envolvimento da arte com sua audiência é o processo de identificação que acontece entre o público e ela. É importante colocar que, dentro de um texto histórico, esse processo de identificação se dá mais pelo conteúdo da obra do que pelo reconhecimento do autor:

Entre os rastros do passado e sua representação no presente, existe uma série de elementos extratextuais tais como, a ideologia, a linguagem, as preferências pessoais e as discussões historiográficas, que impossibilitam uma imparcialidade e objetividade. Contudo, para o método formalista proposto por White são relevantes apenas os aspectos internos às obras, como enredo, argumento e ideologia. Portanto, a análise da vida pessoal do escritor, seu contexto social específico e seus escritos passados não são necessários (WHITE, 2001). Sua vantagem interpretativa é mostrar que a linguagem cria significados sejam eles criados conscientemente ou não pelo historiador (ALMEIDA, 2016, p.206).

Então, caso alguém estude o Foices & Facões, minha vida privada não seria, a princípio, objeto de curiosidade, pois é possível averiguar os aspectos internos desta obra sem ser necessária a compreensão de detalhes da minha vida. Entretanto, esta identificação com qualquer obra de arte se dá por vários outros motivos e um deles é justamente a subjetividade da obra, que pode vir carregada de ideologias que refletem o posicionamento do seu autor. É essa capacidade que a arte tem de falar de si que permite uma identificação com seu leitor no momento em que ele pode si reconhecer durante a leitura, concordar ou discordar de elementos abordados ali, criar empatia com o que está consumindo e, por consequência, perceber que ou se engajou com a obra (ou contra a obra) ou está até se entretendo com ela.
No prefácio que o Dr. Johny Santana Araújo fez para Foices & Facões, ao se referir a Jules Michelet, explica o quanto este autor estava envolvido com a relação entre história e ficção, trata-se de um romântico que “criou uma narrativa que convidava o leitor a vivenciar as realidades dos sujeitos históricos através de sua narrativa, proporcionando uma experiência de empatia com esses sujeitos” (ARAÚJO apud AURÉLIO. 2018, p.14). A empatia pode ser uma poderosa arma para todo tipo de informação, pois é capaz de cativar um público ou aumentar o número de consumidores, e a história, como qualquer área do conhecimento, quer ser lida cada vez mais.
Para a história ser mais consumida, precisa ser mais acessível, mas não vamos nos confundir aqui! Há uma infinidade de títulos sobre história disponíveis em bibliotecas físicas e digitais, incontáveis sites, artigos, informação em toda parte. O acesso ao conteúdo da história é muito fácil hoje, mas a acessibilidade a que me refiro é de outro viés:

Tornar-se acessível a um público inteligente, “mas não especialista” é outra das razões que aponta para a volta da narrativa. O mesmo raciocínio talvez se pudesse aplicar à ficção. O público de best-sellers (...) é significativo, em termos de mercado brasileiro, a julgar pelas tiragens, sobretudo de traduções. Por que não conquistá-lo? É nesse rumo a proposta de José Paulo Paes, que atribui, em parte, aos rigores da crítica, aparelhada exclusivamente para a avaliação da literatura erudita, a inexistência de uma literatura de entretenimento no Brasil (WEINHARDT. 2002. pg. 111).

A ficção histórica pode buscar no entretenimento os mecanismos de sedução e de convencimento de novos públicos. É essa acessibilidade que os best-sellers possuem, esse engajamento junto ao grande público que essas obras dispõem, que o autor de ficção histórica deve almejar. É fazer história, com todo o rigor que ela exige, afinal não se pode anatematizar “indiscriminadamente todos os esforços metodológicos que intentaram dar aparato e estatuto científicos aos estudos históricos” (WEINHARDT. 2002. pg. 111), mas buscando, sempre, entreter o leitor[6].
O mercado de literatura brasileira de entretenimento praticamente inexiste, é muito pequeno diante dos grandes best-sellers da literatura estrangeira que ocupam nossas prateleiras, e a dura verdade é que a história brasileira não é bem refletida na cultura de consumo de massa ou não tem vez diante da sedução de produtos históricos e culturais estrangeiros que nos influencia a todo instante, com filmes, livros, jogos etc. Isso se reflete diretamente no cotidiano de sala de aula:

Às vezes é frustrante reconhecer, mas parece interessa-lhes mais saber sobre um acontecimento que aparece num jogo eletrônico do que de temas que o professor bem-intencionado traz para a aula supondo serem mais próximos das experiências dos alunos. Talvez seja por isso que em algumas ocasiões pude constatar a preferência dos jovens por aulas sobre temas relacionados à “História Geral” – para adotar uma nomenclatura usual no Brasil – e considerem a “História do Brasil” entediante, por comparação. Com o estudante de maior idade – refiro-me ao estudante dos programas de alfabetização de jovens e adultos (EJA) – ocorre o contrário, talvez porque para ele as novelas nacionais são as referências mais comuns. Ainda assim, sua imaginação também não está livre dessas referências romanceadas sobre o passado” (BARBOSA. 2016, p. 21).

            As versões romanceadas da história sempre parecem mais atraentes para o grande público, para aquele não especialista, aquele que está mais familiarizado com grandes épicos estrangeiros do que com a história do seu próprio país. Esse público é envolvido e seduzido pelos mais variados discursos que existem na cultura do entretenimento de massa que vem de fora e que sabe se utilizar da história para fixar um lugar no gosto e na vida das pessoas. Esses grandes best-sellers da literatura, grandes filmes, grandes narrativas estrangeiras ocupam um espaço na mídia que se reflete no gosto dos consumidores da sala de aula e faz com que esses alunos achem que história do Brasil é chata em comparação às outras.
            A história pode e deve buscar inspiração na literatura para atingir patamares, acesso ou aceitação de best-sellers. Utilizar a forma literária, artística, para narrar fatos históricos permite à história tornar-se um produto mais atraente, criando afeição, interesse e referência. É por isso que na dissertação de Alexandre Rodrigues de Frias Barbosa ele afirma que a maioria dos alunos de ensino médio apresentam mais interesse pela História Geral do que pela História do Brasil, isso porque o Egito antigo ou a Europa das grandes guerras tornam-se muito mais atraentes pois são objetos de grandes romantizações, por serem produto de entretenimento mais bem-sucedido do que a história do Brasil jamais fora.
            Transformar a história do Brasil em arte é parte necessária para estimular maior carisma do grande público por sua própria identidade. Por isso que Foices & Facões: A Batalha do Jenipapo, mais que um trabalho sobre história, é um convite para conhecer e se envolver com esses personagens que representam os sentimentos de seu tempo e que pode fazer com o leitor permita-se apaixonar-se por sua história.

5. A Batalha do Jenipapo: versões e ficções

            Quando um autor constrói um produto como Foices & Facões ele está submetido a críticas tanto de historiados quanto de leitores de quadrinhos e nesta última categoria se incluem tanto os leitores esporádicos e autores de obras semelhantes quanto especialistas na área. Existem muitos vieses a serem abordados por estas críticas, que envolve, por exemplo: 1) exatidão histórica e; 2) qualidade artística. Por motivos óbvios, pois sou o autor, não vou traçar aqui nenhum comentário acerca deste segundo viés, entretanto, cabe neste momento alguns levantamentos acerca das minhas escolhas em caráter de narrativa histórica.
            É importante entendermos que “a verossimilhança da ficção não é a mesma da história. Para esta, é verossímil o que se constrói como verdade, enquanto para aquela basta que pareça verdadeiro. O ponto axial da questão gira então em torno da acepção de verdade” (WEINHARDT. 2002, p.119). Foices & Facões trata-se de uma obra que parece verdadeira, justamente porque possui um arcabouço teórico e uma base de fontes e documentos oficiais, que são fruto de minha formação e pesquisa enquanto historiador, porém, meu quadrinho não pode ser entendido como verdade, justamente porque existem inúmeros personagens fictícios e interpretações subjetivas dos fatos[7].
Mesmo com todos os recursos linguísticos e artísticos que um quadrinho oferece, Foices & Facões possui uma produção de corpus documental que pode identificá-lo como uma pesquisa histórica. Certos diálogos não estão ali presentes à toa, não são oriundos de pura fantasia criativa. Existem passagens no quadrinho, trechos com diálogos ou leituras de documentos que são citações reais ou diretamente inspiradas em informações primárias da história. Algumas delas estão abordadas ao longo das 21 notas explicativas que existem no quadrinho e não posso aqui me estender sobre cada uma delas. Por isso, vou me debruçar sobre passagens de um personagem que temos no quadrinho: o major Fidié, e uma das fontes que mais deram corpo ao quadrinho é justamente um texto fruto de seu testemunho ocular desta história:

Não tendo eu pedido aquelle Governo, e sendo só devida a minha nomeação á lembrança de Sua Magestade o sr. D. João 6º, (…) parti immediatamente, por ser essa a vontade do mesmo Augusto Sr. ordenando que o commandante da Charrua Gentil Americana me recebesse a seu bordo (…) Na ocasião da minha partida, Sua Magestade me ordenou muito positivamente, que me mantivesse, dizendo-me: Mantenha-se! Mantenha-se! (…) E quando pouco depois de ter chegado á cidade de Oeiras do Piauhy, me constou da revolta da Villa da Parnahiba (…) Declarei ao Governo Civil da Provincia, que marchava contra aquella Villa, e que em quanto tivesse quatro homens que me obedecessem, o terreno que elles pisassem seria constitucional, e pertenceria ao Reino (FIDIÉ, 2010, p. 159 -160).


Este pequeno trecho narrado pelo major em seu livro Vária Fortuna de um soldado Português permitiu que eu imaginasse várias cenas do quadrinho, mas não apenas isso. A passagem sugere o temperamento do major e a obstinação com que fez a guerra no Piauí e Maranhão naquele primeiro ano após a proclamação da independência. O major descreve como teria sido seu encontro do Dom João VI e até relata palavras ditas pelo próprio imperador: “Mantenha-se!” e “mantenha-se!”, reiterando a ordem. Não pude me abster desta cena (figura 01) e a incluí no quadrinho após toda a passagem que explicava os motivos de recolonização portuguesa no nordeste brasileiro, dito pelo próprio Dom João VI.



Na sequência, temos o trecho em que Fidié diz que “em quanto tivesse quatro homens que me obedecessem, o terreno que elles pisassem seria constitucional, e pertenceria ao Reino”, o que revela bastante da natureza do personagem que eu construi. A partir deste trecho, decidi que Fidié deveria ser entendido como um homem muito obstinado, honrado, e que levaria até às últimas consequências as ordens que recebera diretamente de Dom João VI. E os documentos mostram que assim o fez, mesmo sofrendo duro sítio dos independentes em Caxias e com membros da corte maranhense preparando a capitulação (CHAVES. 1998, p.383), o major português ainda liderou investidas contra as tropas brasileiras que o tentava derrotar, como revela Monsenhor Chaves:

Àquela hora a situação na Vila era realmente insustentável. Já não havia água nem comida. Há dias que os combatentes recebiam meia ração. Mesmo assim, o que restava não daria mais para três dias.
Fidié era obstinado. Queria a resistência a todo custo. Ainda possuía alguma munição. Só não tinha mais comida. Mas a Câmara também se obstinou. Não era mais possível continuar com uma resistência inútil, com sacrifício total da população civil às portas da morte pela fome. Vendo-se sozinho, Fidié demitiu-se, passando o Comando ao Tenente-coronel Luís Manoel de Mesquita. Este era partidário das negociações.
No dia 28 um parlamentário de Mesquita chegou ao Quartel General dos independentes, no Bonfim. Trazia ofício do Comandante de Caxias, no qual ele pedia que ambas as partes nomeassem seus representantes que se reuniriam para discutir os termos de capitulação.
Nesse tempo, Fidié cometeu uma traição ao Comandante Mesquita. Aproveitando a trégua de cessar-fogo de ambos os lados, mandou alguns de seus fanáticos, que não eram poucos, às roças da Olaria e eles voltaram trazendo muita farinha e água. No reduto do Monte das Tabocas a trégua estava sendo aproveitada para o conserto de armas e restauração do entrincheiramento danificado pelos últimos ataques (CHAVES. 1998, p.397).

Isto está nas fontes históricas e no meu quadrinho. Cito a demissão do Fidié, a capitulação proposta pelo Tenente-coronel Mesquita e a nova investida, tudo seguindo a pesquisa minuciosa elaborada pelo Monsenhor Chaves (figura 02). No gibi, a cena se passa numa conversa entre o Major Fidié e o soldado Luís, que se trata de um personagem fictício, que inventei para criar certo drama shakesperano[8] na estória. A conversa se dá entre um personagem real, que foi recriado segundo minhas interpretações, e outro personagem que é inteiramente fruto de minha imaginação. Entretanto, a conversa entre eles é verossímil porque apresenta uma base fidedigna de informações. É isso que define meu quadrinho como uma ficção histórica.



Existe outra passagem que pode ser considera demasiado romântica, ou mesmo despercebida, por ser muito breve, que acontece na página 184 do quadrinho (figura 03), onde vemos o major Fidié liderando uma investida contra os independentes. O fato é que a cena foi construída seguindo indicação do Monsenhor Chaves que disse que “na tarde do dia 19 (de julho de 1823), o próprio Fidié comandou as tropas atacantes. Mas foram repelidos, deixando 9 mortos no campo e conduzindo 67 feridos” (1998, p. 395).



Outra cena que pode passar sem qualquer destaque é a que se dá no dia 10 de abril de 1823, após a batalha do Jenipapo, quando Fidié ainda está aquartelado em terras piauienses e precisa de carne para alimentar suas tropas. Segundo Monsenhor Chaves, soldados de Fidié “conduziam 109 cabeças de gado quando caiu sobre eles o Tenente Simplício desbaratando-os e tomando-lhes a presa preciosa. Os portugueses deixaram 12 mortos, 3 feridos e 4 prisioneiros” (1998, p. 157). Esta passagem está no meu quadrinho e, na cena seguinte, vemos Fidié repreender seus soldados derrotados, em um dos poucos acessos de cólera que o personagem demonstrou em meu quadrinho (AURÉLIO. 2018, p. 179, 180 e 182). E ele só reage desta maneira porque eram homens e alimento extremamente importantes. A falta deste gado foi uma das causas que o fizeram abandonar a margem piauiense do rio Parnaíba e ingressar no Maranhão, o que simboliza o início, de fato, de sua derrota, pois “soube-se que dos 75 homens da expedição apenas 30 atravessaram o rio (...) para o Fidié. Os outros, possivelmente desertaram. Esta derrota apressou a ida de Fidié para Caxias” (1998, p. 328).
Todas essas passagens reforçam a impressão sobre o major que tive ao ler sua declaração em Vária Fortuna de um Soldado Português, que me fez enxergar no lusitano não um sanguinário carrasco, algoz da liberdade brasileira, como normalmente tenta-se pintar sua figura, mas me permitiu construir uma personalidade moldada na honra e hierarquia militar de um homem que estava seguindo ordens diretas de seu imperador. Essa é a minha versão de Fidié nesta ficção histórica.
Existem outras passagens ou personagens ao longo do quadrinho que possuem registros históricos, como o “capitão” Vicente Bezerra que aproveitou-se da situação de balbúrdia em Campo Maior para saquear portugueses (como, por exemplo, o compadre Manoel Rosa, que é citado na página 105 do gibi) em nome da causa brasileira, ou os irmãos Joaquim e Salvador Bento que organizaram milícia para participar da batalha do Jenipapo, ou a prisão de padre Manoel e dos irmãos Pereira e Vitório, em Campo Maior, a mando de Leonardo Castelo Branco e várias outras cenas, todas encontram respaldo em fontes históricas. Entretanto, quero ainda esclarecer dois pontos que podem causar estranhamentos por se tratarem de liberdades poéticas que um historiador deve lidar com muita cautela: a tomada da Casa da Pólvora em Oeiras e o dia da proclamação independência.


No meu gibi, decidi utilizar uma leitura parecida com a de Pedro Américo em seu famoso quadro Independência ou Morte, decisão esta que, definitivamente, não enche de orgulho meu lado historiador e que apenas me satisfaz a veia artística. Isso porque, existem registros oculares de que tanto Dom Pedro, no dia da proclamação, quanto a comitiva que o acompanhava, não estariam trajando vestes de galas, não montariam cavalos de guerra, mas “um asno baio” (jumento de carga), animais mais propícios para o trajeto que faziam às margens do rio Ipiranga e que o imperador estaria sofrendo de problema intestinal (SCHLICHTA. 2009, p.4).
Todas essas informações permitiriam a qualquer historiador pintar um quadro sobre o 7 de setembro de 1822 completamente diferente daquele de Pedro Américo, entretanto, me permiti fazer uma versão mais romântica e ignorar esses indícios históricos, isso porque, tanto o quadro quanto meu quadrinho escolheram narrar os fatos escondendo elementos pouco heroicos ou cômicos que não dialogariam com nossa obra. Vejam o que o autor da pintura disse sobre seu próprio trabalho:

A realidade inspira, e não escraviza o pintor. Inspira-o aquillo que ella encerra digno de ser offerecido a contemplação publica, mas não o escraviza o quanto encobre contrario aos designios da arte, os quaes muitas vezes coincidem com os designios da historia. E se o historiador afasta dos seus quadros todos os incidentes perturbadores da clareza das suas lições e da magnitude dos seus fins, com muito mais razão o faz o artista, que procede dominado pela idea de impressão esthetica que deverá produzir no espectador. [...] Finalmente, comparando as tradições, as chronicas, as passagens historicas, os dictos e presumções individuaes, os testemunhos artisticos e as diferentes opiniões acerca do successo "que fez estremecerem de jubilo as margens do Ypiranga", consegui compor a fraca obra que agora submetto ao benevolo juizo das pessoas illustradas do meu paiz; certo de que, se não acertei, ao menos esforcei-me por ser sincero reproductor das faces essenciaes do facto, sem esquecer totalmente as difficeis e severas lições da sciencia do bello. (AMÉRICO apud SCHLICHTA. 2009, p.4)

Não conseguiria explicar melhor: os desígnios da arte, de fato, podem coincidir com os da história e isto se dá, basicamente, por causa de uma busca por certa impressão estética. Se estivesse procurando fazer um quadrinho cômico, seguir fielmente o que diz os indícios históricos era o caminho mais fácil, entretanto, o drama que queria compor é completamente incompatível com a provável disenteria do imperador. Sim! Trata-se de uma escolha, trata-se de uma versão, mas ao menos me esforcei para ser sincero criador da cena, afastando do quadro “todos os incidentes perturbadores”, e digo isso não sem certa ironia, como, provavelmente, não o fez o ilustre artista Pedro Américo.
Quero citar ainda uma passagem curiosa dessa história da independência do Brasil no Piauí e minhas escolhas narrativas diante do acontecido: Em 13 de dezembro de 1822, seis semanas antes do dia 24 de janeiro de 1823, em que Oeiras adere à independência de Dom Pedro, aconteceu um assalto à Casa da Pólvora daquela vila, local onde eram guardadas, principalmente, armas e munições para serem utilizadas pelas forças militares da província. Naquela ocasião, o major Fidié já estava muito longe de Oeiras, aproximando-se da Vila da Parnaíba, a cerca de 660km ao norte do Estado, onde chegaria apenas a 18 de dezembro de 1822.
Oeiras estava praticamente desguarnecida e Fidié acreditava que a Capital era fiel ao governo português e que jamais o trairia como fez naquele 24 de janeiro. O assalto, de fato, aconteceu e está documentado. Abdias Neves nos informa que às 2 horas da madrugada, seis homens encapuzados atacaram a Casa da Pólvora e que surraram à chibatadas os guardas do local (2006, p.80). Monsenhor Chaves nos informa, entre outras coisas interessantes, que a ousadia foi durante o dia:

Às 14 horas de 13 de dezembro, (...) seis homens encapuzados surpreenderam a guarda da Casa da Pólvora, tomaram-lhe as armas e surraram-na a chibata. Ninguém acudiu aos guardas. Abriram-se devassas, mas tudo ficou envolto em mistério.
A muito custo e depois de alguns sermões incendiários do Vigário Colado, Padre Dr. José Joaquim Monteiro de carvalho e Oliveira, as autoridades resolveram reunir-se a 29 de dezembro para algumas deliberações, que acabaram se resumindo a uma só: recomendar ao Comandante da Guarnição que tivesse a tropa de prontidão para o que pudesse suceder (1998, p. 283).

Preferi seguir a indicação de Abdias Neves e fiz com que a cena se passasse durante a noite. A escuridão é muito mais interessante para um cenário desses. Trata-se, novamente, de uma escolha estética, mas minha versão para o assalto vai um pouco mais além do simples horário e foi essa citação de Monsenhor Chaves que me permitiu conjecturar o possível mandante do crime, já que tudo permanecia envolto em mistério e ainda hoje não se sabe quem são, de fato, os culpados. Segundo o autor, o acontecido na Casa da Pólvora deixou as autoridades da vila apreensivas, portanto reuniram-se, determinando que permanecessem de prontidão, preparados para qualquer coisa que pudesse acontecer. Isso indica que havia suspeitas de que aquele ataque não foi desarticulado de outras intenções e que poderia estar ligado aos interesses dos separatistas.



Além do espancamento dos soldados da Casa da Pólvora, muitas armas e munição foram roubadas, mas não se sabe quem fez o assalto ou quem foi o mandante. Não se sabe se alguém foi incriminado ou punido. Não existem registros precisos sobre isso, entretanto, no meu quadrinho, há. Me permiti dar um rosto e nome para o homem que guiou seu bando e, assim, fizeram o roubo. Este homem é fruto de minha imaginação: chama-se Timótio.
Timótio é um desses personagens figurantes, de poucas participações, e que pode acabar sendo ignorado no conjunto da obra. Ele aparece em apenas 3 momentos: 1) entregando um bilhete para Manoel de Sousa Martins que informava sobre a adesão de Parnaíba à independência, que aconteceu em 19 de outubro de 1822; 2) no assalto à Casa da Pólvora; e 3) no golpe oeirense de 24 de janeiro de 1823, recebendo ordens de Manoel de Sousa Martins. Neste terceiro momento, Manoel diz, explicando a todos os seus companheiros como se dará a ação que permitirá a adesão de Oeiras à independência: “...enquanto o major Clementino tomará a Casa da Pólvora e a manterá em segurança. Para isso, todos poderão contar com a ajuda de Timótio e alguns homens de confiança dele, que estão preparados e municiados” (AURÉLIO. 2018, p.89). O segredo aí está em “preparados e municiados”.
Na minha versão, Timótio é um jagunço que age sorrateiramente pela vila, sob os mandos de Manoel de Sousa Martins. Ele é o homem que assalta a Casa da Pólvora, logo, minha intenção era ligar este acontecido a uma autoria intelectual do próprio Manoel.  Tudo deveria ficar mais claro quando Timótio volta à Casa da Pólvora no dia 24 de janeiro, agora, ironicamente, mais preparado e municiado com as armas que ele próprio roubou no dia 13 de dezembro, segundo meu gibi, claro. Assim, semanas depois, o assalto serviu para armar os independentes para o golpe da adesão daquela vila à independência.
Abdias Neves também nos informa que no dia 24 de janeiro de 1823, Manoel e seu irmão Joaquim de Sousa Martins reuniram empregados, jagunços e vários companheiros para tratarem da tomada do poder (2006, p. 95 – 96), tudo isso indica para mim que Timótio, ou outro personagem real de fato culpado pelo assalto à Casa da Pólvora, poderia sim estar ali junto a Manoel de Sousa Martins e entre aqueles homens que tramaram a tomada do poder.
E foi assim que pude criar versões e ficções da história da batalha do Jenipapo e do processo de independência do Brasil no Piauí, com a ajuda criativa de recursos históricos, que minha formação acadêmica me forneceu, bem como com a linguagem artística das histórias em quadrinhos. Dessa maneira, produzi uma história em quadrinhos que dialoga com o processo de pesquisa histórica mas que se permite criar personagens e interpretações que não são bem claras à história.
Neste percurso existe, entretanto, uma diferença entre a ficção histórica e a literatura histórica. A primeira, é o ato de fazer histórica com método e práticas aceitas por seus pares, mas que se entende como fruto de linguagens subjetivas a que o escrito está sempre submetido. A segunda, é se permitir criar romanticamente, sendo, porém, um sincero recriador desses fatos, vendo neles um auxílio para a construção de um roteiro pontual, uma narrativa sustentada pela coluna vertebral dos acontecimentos. Foices & Facões é desse segundo tipo.

6. Conclusão: “A história é um romance real”.

Para concluirmos, permitam-me retornar à nossa epígrafe escrita por Paul Veyne de que a história se trata de um romance real. A afirmação nos cai bem justamente porque estamos tratando de narrativas históricas a partir da análise de um texto escrito na forma de quadrinhos, para ser mais exato: de um romance gráfico[9].
Foices & Facões: A Batalha do Jenipapo também pode ser entendida como um romance histórico na medida em que narra um fato, sintetizando os tempos e selecionando temas, de uma maneira muito próximo como fazem tanto a história como a literatura:

A história é uma narrativa de eventos: todo o resto resulta disso. Já que é, à primeira vista, uma narrativa, ela não faz reviver esses eventos, assim como, tampouco o faz o romance; o vivido, tal como ressai das mãos do historiador, não é o dos atores; é uma narração, o que permite evitar alguns falsos problemas. Como o romance, a história seleciona, simplifica, organiza, faz com que um século caiba numa página, e essa síntese da narrativa é tão espontânea quanto a da nossa memória, quando evocamos os dez últimos anos que vivemos (VEYNE apud MORAIS. 2018, p.44).

Veyne nos permite enxergar esse viés narrativista que flerta sem culpa com a linguagem literária, colocando-nos na posição de contadores de história, não de atores. Ele nos diz que não temos condições de reviver esses eventos, assim como é impossível para a literatura oferecer essa experiência, mostrando-nos mais semelhanças ainda entre o feitio historiográfico com a arte.
Essa capacidade de que um século caiba em uma página nos traz à memória a obra de Capistrano de Abreu, Capítulos da História Colonial, que citamos no início deste texto. Sim! A síntese é fundamental para a história e para a literatura. Selecionar, simplificar e organizar o que precisa ser dito me parecem etapas claras do que fiz em meu Foices & Facões.

O historiador, desse modo, teria liberdade de escolha, podia recortar o que pretendia expor ou omitir narrativamente no fito de estabelecer a compreensão, pois o tempo pretérito, como também os acontecimentos que o constituíram, não possuíam articulação precisa, lógica e natural se não fosse pela trama/intriga urdida pelos sujeitos do conhecimento histórico (MORAIS. 2018, p.45).

Evidentemente, a realidade é complexa e a construção de uma narrativa coesa e precisa não é simples, portanto, produzir um texto que represente um cenário real em todas as suas multiplicidades de acontecimentos ou interpretações não é tarefa fácil. Na verdade, um cenário real, em sua totalidade, é completamente inviável, entretanto, cabe ao historiador, tanto quanto ao romancista, traduzir essas informações de maneira articulada, precisa, lógica e natural de forma que se torne acessível para o grande público. Esse é o poder da síntese.
Além da síntese, cabe aos narradores saber que qualquer trama “não se organiza, necessariamente, em uma sequência cronológica; como um drama interior, ela pode passar de um plano para outro (...) como um corte transversal dos diferentes ritmos temporais” (VEYNE apud MORAIS. 2018, p. 45) e isso me lembra, claramente, a parte 1 do meu quadrinho, que começa com a chegada da família imperial portuguesa ao Brasil em 1808 e na página seguinte já é 1815, com a decisão do Brasil tornando-se Reino Unido. Poucas páginas depois, nós temos o 7 de setembro de 1822 seguido do 13 de março de 1823, dia da batalha do jenipapo, onde faço uma ligação direta de causa e efeito entre as duas datas. Mas o corte cronológico mais curioso é o que se dá no início da parte 2, onde temos um retorno à data de 8 de agosto de 1822, dia em que o major Fidié chega, pela primeira vez, a Oeiras.
Esse tipo de controle do tempo na narrativa, onde o narrador faz saltos temporais adiante e posteriores ao que parece ser uma linha cronológica dos fatos é muito comum em todas as contações de história, sejam filmes, quadrinhos ou literatura e serve como artifício para entreter e fisgar os leitores. Controlar o tempo é ofício de todos os tipos de narradores.
E tecer essa narrativa é a operação do pesquisador, que decide onde e como dar o ponto, já que, na realidade, essa colcha de retalhos não existe, quer dizer, a história é uma construção sobre o tempo e não o tempo em si. Foice & Facões: A Batalha do Jenipapo é um crochê urdido sob orientação dos fatos históricos, porém tecido sob minhas medidas, minhas escolhas e meus pontos prediletos, portanto, talvez ele lhe sirva bem, talvez não.
Sim, a história é um romance real, mas a realidade é articulada pelo narrador e, quando tratamos de um romance gráfico que tem personagens e relatos que não aconteceram de fato, é preciso traçar uma linha clara entre o que é história e o que é arte.
O vaqueiro Teobaldo e sua família, da forma como narrados em meu gibi, estão entrelaçados nos nós da narrativa da história do Piauí que eu construí e qualquer desavisado pode se confundir entre o que é a interpretação dos fatos, a construção/ficção da história, e o que é criação artística do autor. Quantos leitores do meu quadrinho podem confundir um personagem real, de fato, com um fictício? Quantos saberiam dizer, lendo Foices & Facões pela primeira ou décima vez, que o português Januário é criação minha e que Manoel Rosa, outro português assaltado pelo “capitão” Vicente Bezerra, existiu realmente?
Como dissemos lá no início de nosso texto, explicando as origens da história cultural, “a ideia de verdade em história modificou-se porque o objeto da história se deslocou, porque a história passou a se interessar menos pelos fatos que pelas relações” (DUBY. 1993, p. 59). Ou seja, Januário pode não ser um personagem real, mas a relação que ele teve contra o Vicente Bezerra e o medo que a personagem sentia diante de um ódio crescente na vila de Campo Maior contra os lusitanos é real. O personagem não é “verdade”, mas é verdadeiro na medida em que se realiza em suas relações com o cenário real da história.
Não vou concluir aqui oferecendo um manual sobre como ler ou produzir uma obra que flerta com a verdade, mas permitam-me apenas duas sugestões: questione qualquer informação, principalmente porque a história não é uma ciência exata, mas divirta-se com ela.

Figura 1 Encontro de Fidié com Dom João VI, em Portugal.

Figura 01.


Figura 02
Figura 2 Cena da conversa sobre preparação de ataque de organizado por Fidié após o início das conversas de capitulação (AURÉLIO, 2018, p.188).



Figura 3
Figura 3 Fidié liderando pessoalmente ataques contra os independentes, acontecimento que segue indicações de fontes históricas.





BIBLIOGRAFIA

ALAMEIDA, Renata Geraissati Castro de. Os limites entre a História e a Ficção. Hist. historiogr. Ouro preto. N. 22. Dezembro 2016. p. 202-213.

 BARBOSA.  Alexandre Rodrigues de Frias. A narrativa como ensaio para aprendizagem da História: arte e ficção na constituição do tempo e de si. Dissertação (Dissertação em história) – UERJ. Rio de Janeiro. 2016.

BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.

CERTEAU, Michel. A escrita da história. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

CHAVES, Monsenhor. Obras Completas. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves. 1998.

DUBY, Georges. A história continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

FIDIÉ, João José da Cunha. Vária Fortuna de um soldado Português. Teresina: FUNDAPI. 2006.

MORAIS, Julierme. Reflexões sobre a narrativa histórica na modernidade reflexiva. In: NERY, Emília Saraiva (Org). Teoria da história: articulações entre tempo, sociedade e cultura. Teresina: Edufpi. 2018.

NEVES, Abdias. A guerra de Fidié. Coleção Independência. Vol 1. Teresina: Fundapi. 4ª ed. 2006.

RODRIGUES. Jose Honório in: ABREU, Capistrano de. Capítulos de História colonial. Sociedade Capistrano de Abreu. 5º ed. 1969.

SCHLICHTA, Consuelo Alcioni B. D. Independência ou morte (1888), de pedro américo: a pintura histórica e a elaboração de uma certidão visual para a nação. ANPUH – XXV Simpósio Nacional de História. Fortaleza, 2009.

WEINHARDT, Marilene. Ficção e história: retomada de um antigo diálogo. Revista Letras, Curitiba: Editora UFPR. n. 58, p. 105-120. jul./dez. 2002.




[1] Mestre em História do Brasil e especialista em Artes Visuais, ambos pela Universidade Federal do Piauí -UFPI.
[2] O livro Foices & Facões: A Batalha do Jenipapo é de minha própria autoria, junto com meu irmão Caio Oliveira, por isso, de antemão, peço aqui que não entendam este trabalho com um autoelogio e o observem como um relato pessoal que se deu no processo da fabricação do discurso histórico nesta obra.
[3] SCHLEIERMACHER. On the Different Methods of Translation. In: Willson, A. Leslie. German Romantic Criticism. Continuum: 1982. Citação original:In one sense every person is restricted by language; things outside the realm of language cannot be conceived clearly”.
[4] Sobre os “homens comuns”, refiro-me aos trabalhadores livres, escravos, vaqueiros, roceiros etc. que participaram da luta armada de 13 de março de 1823, em detrimento aos militares, políticos e intelectuais que articularam a batalha do Jenipapo.
[5] Vide, por exemplo, o programa de tv Cosmos, originalmente apresentado por Carl Sagan e que teve uma reformulação por Neil deGrasse Tyson, ambos com um discurso popular e muito atraente. Neil deGrasse, na sua versão do show, viaja pelo espaço sideral numa espaçonave que mais parece saída de um episódio de Star Trekk.
[6] Existe, entretanto, matizes de entretenimento que colocariam em posições muito afastadas da mesma escala livros como A Guerra de Fidié, de Abdias Neves, e o meu Foices & Facões. Ambas são obras sobre a batalha do Jenipapo, contudo, a primeira possui linguagem acadêmica e a outra é um romance em história em quadrinhos que procura entreter muito mais que informar. As duas, porém, devem buscar informar e entreter.
[7] É curioso ver o caso de outro quadrinho, mundialmente famoso, que exige para si a categoria de não-ficção: “O mesmo desconforto com relação ao esvaziamento da distinção entre ficção e realidade é expresso por Art Spiegelman, que após ter sua obra Maus colocada na categoria de ficção, rebate com tom de ironia, que não teria passado por árduos anos de pesquisa para fundamentar o livro se soubesse que seria categorizado como ficção. Para Dominick La Capra a obra de Spiegelman, que é tanto ‘uma obra completa de memória e o duelo entre reconstrução histórica auto-etnográfica e arte’ (LACAPRA 2009, p. 205) são relevantes para se problematizar esta distinção entre ficção e não ficção uma vez que estas categorias binárias não dão conta das diversidades que permeiam a escrita” (ALMEIDA. 2016, p.209). Maus é uma grande pesquisa histórica sobre a Segunda Guerra Mundial onde o autor relata as memórias do pai, que sobreviveu aos campos de concentração nazista.
[8] O soldado português Luis apaixona-se por Joana, piauiense e sobrinha de Teobaldo. No quadrinho, sobre o romance deles desmorona ares de Romeu e Julieta porque a convivência entre brasileiros e portugueses, os meus montecchios e capuletos, estava muito belicosa naquele período após o 7 de setembro de 1822.
[9] “Romance Gráfico”, ou graphic novel, é um termo criado pelo quadrinista Will Eisner para divulgar sua obra Um Contrato com Deus, lançada originalmente em 1978.  A expressão foi utilizada com a intenção de valorizar quadrinhos que tivessem conteúdo e forma mais parecidos com a literatura, procurando atingir novos públicos além de ser melhor aceitos pela crítica.